domingo, 26 de outubro de 2014

desencanto


Acho que perdi os olhos de te ver
Não encontro mais as palavras de te falar
Nem os sentimentos de te sentir.
Há em mim agora um desejo de silêncio
De casa vazia – de geleira.
Desejo de não ter lembranças
- Só esquecimentos.


Foto: Lásara Vargas

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Sina


As histórias de minha mãe são povoadas de santos,
Assim também eram as da mãe dela.
Sua visão parece ser o  seu sentido mais aguçado
Embora tenha lhe sobrado somente a de um olho.
Minha mãe reza e pede a Santa Luzia que o proteja.

Durante anos tentei decifrar-lhe os sonhos
Mas acho que estavam muito bem guardados
Por todos os seus santos.
Ou talvez deles também ela os tenha ocultado,
Pois, sonhar, sonhos de felicidade,
Não era permitido por nenhum santo
Acostumados que são às dores e ao sofrimento.

Herdamos seus anseios, seus medos – sonhos talvez?
Não podemos afirmar - jamais afirmamos.
Minha irmã se ressente da ausência de mimos
- Sementes que nunca vingam.
A corrente nunca se quebra?
Quero crer. 
Valei-nos todos os santos de nossa mãe.

Foto: Ana Claudia/Lásara

sábado, 19 de julho de 2014

Acta est fabula


“Foi-se a Copa”!
O jogo está perdido.
Não tivemos o Nelson Mandela
Para instigar uma seleção amarela,
De camisa e alma, com o Invictus.
O campo era grande demais 
Para corações tão pequenos.
O adversário era firme – cruel não.
Ele fez o que veio fazer – jogou o jogo.
E o nosso time ficou destruído,
Destronado.
Os jornais do mundo comentam, sarcásticos,
Porque esses sim, são cruéis.
E se esquecem que o povo, de fato, 
não joga o tal jogo.
Na manhã seguinte tudo estava
Absolutamente igual – real.
A vida não é um jogo,
Não se ganha nem se perde assim.

Imagem: http://ultradownloads.com.br/papel-de-parede/Bandeira-do-Brasil/

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Contrassenso

Eu tive vontade de largar tudo:
A bolsa e o que nela continha,
Os sapatos revirados,
as roupas de agradar os olhos dos outros,
o meu nome, o meu dia,
enfim, a minha vida.
Eu tive (eu tenho) essa vontade
De largar a corda, sair da fila,
perder o prumo, o esteio
Soltar o verbo, o visgo, a rodilha
Me deixar cair no precipício,
Voltar ao início,
Errar a cor, achar o tom.
Andar em trilhas
Catar pedrinhas lisas
Para atirá-las adiante
Parar para ver, sentir e ser.
Rever a rota, repensar o querer
E cair na vida – viver.

Foto: Lásara Vargas


sábado, 17 de maio de 2014

Noite Alerta


Noite alerta
Um grande olho te caça no escuro
Não, talvez não esteja escuro,
Porque nada se esconde
A insônia é um grilo gigante
Vestido com seu casaco fosforescente
Sentado ao pé da cama
Açoitando o passado
Esmiuçando o presente e,
Com olhos injetados,
Perscrutando o futuro.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Um trem passou


Sob um céu de estrelas
Um trem de carga se alonga
Lento, interminável
Seus barulhos acordam corujas, grilos
E sentimentos
Da janela eu o vejo
Se embrenhando
noite afora, noite adentro
Imagino mais
Leva e traz, leva e traz, leva e traz
Leva terra
Leva flor
Leva amor
Leva dor
Leva e traz
Leva, leva, leva
Longe, longe
Sobra um silêncio na noite vazia
O trem passou e levou as estrelas.

Foto: blog geraesdeminas (Saulo Guglielmelli)

terça-feira, 18 de março de 2014

Navegar é preciso


Os barcos desciam o rio e eu os observava,
Às vezes com grande ansiedade.
Para embarcar em alguns era preciso nadar até eles,
Então, eu desistia.
Alguns aportavam e aguardavam,
Mas eu os deixava ir.
Os barcos deslizavam pelo rio e eu os observava.
Alguns até insistiam que eu devia embarcar,
Mas não me davam certeza onde iam atracar.
Por isso, eu tinha medo.
Os barcos continuam a navegar pelo rio,
Não como antes, é verdade,

E eu, à margem, observo.

Foto: internet

quarta-feira, 12 de março de 2014

Paz


Há um cheiro bom de café - acabou de passar.
Me sinto tocada por uma lembrança tão macia como a seda.
Há um corredor por onde entra a luz que me acolhe,
Me envolve e me protege.
A tarde está quase no fim.
O silêncio me espera e me conforta.
Nada mais há.

Estou em casa.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Névoa de nada


Na terra, nos mares, nos ares,
O que faz germinar, multiplicar e que se
Estende sobre tudo – estás simplesmente.
E também no infinito, o todo - absoluto.
O céu e tudo o que nele ostenta.
Tão longe – inacessível.

És a vida que alimenta cada uma das células deste corpo
Porque o habitas – foi quem o criastes.
Ao mesmo tempo em que, se quiseres,
com poder supremo, o abraça
E o apequena.
Estás por toda parte. Tudo a ti pertence.

Estás tão perto e tão distante e tudo a ti volta.
És modesto como um olho d’água – o ponto de partida,
Mas também o trajeto e o mar aonde tudo deságua:
A tristeza profunda e a alegria desmedida
- o destino. Poderoso.

Somos somente aquilo que se perde,
que não se sustenta por si.
Somos a cria, a criatura, o fim em nós mesmos,
o pó que, depois de tornado vivo, feliz ou infeliz,
volta a ser pó.

Os meus braços se erguem porque assim o queres,
e se assim não queres,
Dirigem-se humildes, aflitos, em tua direção.

Absoluta a tua existência, absurda a minha.
Estás dentro de mim e sobre mim derramas toda a glória
E eu me sinto tão imperfeito.
És o soberano, o que não se explica.
E eu, o que sou senão pó,
a névoa,
o nada?

Foto: Uol

domingo, 5 de janeiro de 2014

Antes que a música acabe...


Irmão, nesta noite não falemos de nossas pelejas,
Já não tem importância neste tempo,
Busquemos lembranças mais alegres e
Toquemos as nossas músicas – sem tristezas.
Por um tempo grande demais estivemos desatentos.
Perdemos esse tempo... Mas não falemos disso.
Ouça a música.  Lembra-se desta música?
Cuidemos de ouvi-la.
Gostaria de dançar, mas... estou inibido
 – talvez me censure (já nos estranhamos tanto!).
Estivemos muito desatentos amassando com nossos pés
As uvas do passado – puro amargor!
A vida passa mais devagar quando a observamos atentamente.
Lembra-se da música? Cuidemos de ouvi-la.
Talvez goste de vinho (eu já não sei do que gosta).
Há uma sala enorme e vazia e gostaria de dançar, mas...
Acumulamos horas demais para viver depois.
Poderíamos vivê-las agora?

Irmão, ouça a música antes que... acabe.

Gravura: Duy Huynh