sábado, 19 de junho de 2010

Legado

Pois se de tudo fica um pouco,
Ficou um pouco de nosso pai em nós.
Aquele olhar cansado, amedrontado muitas vezes,
Também se vê em nosso olhar.
Há ainda um pouco de desesperança,
Uma sobra de angústia.

Da nossa mãe, o que dizer?
Há tanto, que algumas vezes nos incomoda.
Há inquietude, um receio de não conseguir.
Um jeito de dizer sem querer ter dito,
Contornando palavras e, por que não,
Quase sempre pensando em desdizer.

Do nosso pai e da nossa mãe,
Sobraram tantas coisas em nós,
Muito mais que o detalhe do queixo
Muito além do jeito de olhar.
Há, sobretudo, uma vontade de prosseguir.
Uma fé persistente, orgulhosa,
Que nos impede de retornar.

Quando eu ouço deles as histórias,
Quase sempre tão simples e sofridas,
Meus olhos, tão parecidos com os seus e os deles,
Ficam amargurados, assim, rasos d’água.
Mas, sempre há um ‘de repente’, coisas da vida!
Eles contam, e juntos, outra vez os olhos se inundam
Mas, dessa vez, a gargalhar.

E descubro também nessa hora,
Que esse nosso jeito de rir, contido,
quase envergonhado, também é deles.
Pois veja, se não foram eles que nos ensinaram
a moderar o riso, o amor, a dor - a vida.
A viver sem muito se exaltar.

Nessas e em outras tantas horas assim tão nossas
É que olho em sua direção e me reconheço.
Tanto você quanto eu,
nas pegadas do nosso pai e da nossa mãe,
carregamos com enleio e orgulho
,
Uma constatação: há muito deles em nós.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Carlos e Mário – Drummond e Quintana

O dia estava bonito! Eu creio – é mesmo preciso crer – que aquele dia estava especialmente bonito para ser cantado, ou melhor, poetado.

É estranho, diriam alguns, que em pleno mês de agosto tenha havido um dia tão suave, tão propício a ser tema de um poema. Mas, assim foi.

Na paisagem daquele dia criado pela poesia, eis que surge um homem magro, elegantemente simples, fala mansa, olhar doce (parecia ter chegado de Minas Gerais) e pôs-se a escrever.
Enquanto escrevia, lançava pequenas borboletas brancas que contrastavam com o azul do céu, ao mesmo tempo em que espalhava palavras que se orquestravam e se transformavam em poemas e músicas e eram como flores de todas as cores tornando policromáticos aqueles campos. E tudo ‘parecia’ perfeito! Parecia.

Mas, faltava algo – ou alguém.

O tempo passou, sem que ninguém se apercebesse. Mesmo porque, por ali não havia calendários nem eram mesmo necessários.
“Porque, na poesia, o tempo não existe! Ou acontece tudo ao mesmo tempo...”

E foi assim, passando sem se dar conta que, num belo dia de maio, chegou por ali um outro homem, tão elegantemente simples quanto aquele que viera antes. Eles se olharam e se entenderam. Ambos tinham o mesmo jeito de olhar. E se cumprimentaram como se fossem velhos amigos esperando um pelo outro:

- Olá, Carlos!
E Carlos chegando-se um pouquinho para o lado, para deixar o outro sentar, respondeu:

- Oi, Mário. Eu estava te esperando...
E depois disse:

“Gastei uma hora pensando um verso que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro inquieto, vivo.
Ele está cá dentro e não quer sair.
Mas a poesia deste momento inunda minha vida inteira.”


Depois, apreciaram a tarde que caía, bonita como só um grande poeta poderia descrever.

E Deus suspirou feliz. Afinal, seus filhos estavam de volta.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Re-sentimento

Você me diz que o que estou sentindo é ‘ressentimento’.
E eu penso: ressentimento – ressentir – sentir novamente.

Sentir outra vez a dor, o amor, a aflição, a afeição,
o medo, a coragem, a angústia, a alegria, qualquer que seja,
outra vez, o mesmo sentimento.
Não entendo ressentimento como algo sempre ruim –
mas, uma reprise do bem ou do mal, de qualquer natureza,
que acariciou ou arranhou o coração.

Mas a mágoa não. É outro ‘sentir’ - outro sentimento.
É um lembrar com tristeza, como um rio correndo devagar,
sem alarde, sombrio e melancólico.
É um querer voltar no tempo e impedir que se faça o que está feito,
É um desejar que não se tivesse quebrado o encanto.

É a luz tênue de uma vela gotejante,
exposta a um vento suave e frio que entra pela fresta.
É um doer que se quer esquecer.
É esperar a próxima estação, o fim do inverno.
É um desejar que passe, que não doa.

A mágoa é uma lagoa de águas tristes à espera do sol.
É amor traído que não se vinga porque ainda se quer amar.
É o carinho e a afeição que não se expressam,
É sentimento bom que encruou.