quinta-feira, 3 de outubro de 2013

O tempo que passa no tempo que fica - II


De uns tempos pra cá ele cismou de sentir saudade.
Seus olhos pequenos, embaçados de tempo,
Estão quase sempre úmidos de saudade.

Deu para lembrar a casa antiga que há muito,
Muito tempo  se rendeu ao peso dos anos.
Até mesmo da cidade onde nasceu resta pouco.
Os lugares por onde andou são agora caminhos de saudade.

Lembra a mãe - seus cheiros, suas flores, suas brabezas, seus mimos.
Repete seus gestos e suas palavras e, sem perceber,
Copia seus medos e suas angústias.
E dos seus olhos brotam saudades.

Fala do pai com respeito e alguma mágoa
(Talvez por causa do seu jeito duro, esculpido na aroeira dos carros de boi).
E termina quase sempre lembrando as suas grandes perdas.
E nessas horas também escorre saudade.

Recorda muitas vezes dos irmãos
Que partiram há muito – das brincadeiras de criança,
As molecagens de juventude, as rusgas e os reencontros.
E nos seus olhos minam saudade.

Agora todos os objetos têm uma espessa camada de lembranças
E todas as cenas parecem remake.
A vida corre lenta, como um rio calmo, de águas claras,
Cuja nascente ele conhece tão bem.

A foz esconde-se atrás de uma luz incerta.
É nela que mergulham todas as saudades.

4 comentários:

  1. "...escorre saudade." Lindo isso. É fartura. Sabe, a gente só tem saudade das coisas boas, momentos que nos emocionaram, nos encantaram. Saudade é lembrança de felicidade!
    Adorei! Beijos e ótimo fim de semana, Ana.

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  2. Há um tempo meu avô sofreu um derrame, que afetou em grande parte sua fala - mas não seu entendimento. O meu avô, a quem nunca vi chorar antes de tal episódio, hoje é só saudades escorridas. Acho que é a forma de dizer: tenho tanto pra dizer, mas não consigo... ao menos restaram as lágrimas e os olhos, que são mestres em contar histórias.
    Texto muito bonito, parabéns!

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  3. ...o que dizer? Sabendo de tudo que você escreve (na alma) e vendo em suas palavras tanto sentimento nomeado, a gente fica até sem saber o que pensar...Apesar disso, acho que a capacidade de expressar esse 'mundo' de lembranças que nosso pai carrega é um dom muito raro. Tudo isso precisa virar um livro... Gostei muito desse, um dos melhores dos últimos tempos rs

    bjs

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  4. No café da manhã, na mesa na hora do almoço, só lembranças; dos pais, dos irmãos, o mais lembrado é o João (moço bonito e cheio de galanteios) talvez pq nunca soube o que realmente aconteceu com ele. Às vezes fico o vendo no fundo do quintal a olhar o "Mar de montanhas", Como o pássaro da foto acima, quantas lembranças...bjs!. Ele acabou de entrar, como sempre cheio de lembranças..."quando eu era mais jovem, tinha muito ânimo, andava longe, mesmo cheio de medos, naquele tempo...

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