domingo, 31 de outubro de 2010

Um só pedido


O homem jogou flores no mar,
Pedindo ao Pai: não me deixe afogar.
Subiu de joelhos as escadas da igreja
Implorando a Ele: livre-me da peleja.

Marejou seus olhos num ato de contrição
Suplicando, gritou: Senhor, dê-me Seu perdão.
Acendeu muita vela, tanta cor diferente,
Repetindo em cada uma: por amor, Sê clemente.

Cerrou os olhos como um aflito,
Levou as mãos ao peito num gesto contrito
E baixinho, quase um lamento, pôs-se a dizer:
O Senhor tudo sabe, tudo pode ver
Não há meios nem como de Ti esconder
O que minha boca não fala, o coração diz
Eu quero, ó Pai, é que me faça feliz!

Deus sorriu – paciente.

domingo, 24 de outubro de 2010

Medo

O medo caminha lá fora.

Seu uniforme cinza, sua cor pálida, suas mãos frias.
O medo tem medo que mudem o caminho,
Que troquem as placas, que a luz se apague.

O medo percorre ruas sombrias, de cabeça baixa
E passos sufocados.

Nos corredores do colégio, corredores tão longos,
O medo, tão pequeno, caminha com medo.
Tem medo da freira que governa a escola,
Sua mão de ferro, seu semblante de ferro.

Os portões se abrem – o caminho é o mesmo de todo dia,
Mas o medo, coitado, tem pavor das sombras.
Ah, o medo é tão frágil! E se o ônibus se atrasa?
E se faltar tempo? E se sobrar?
Há tantos buracos na sua estrada...

A palavra ensaiada. Fique calado – podem te ouvir!

O medo calado. Um coração apertado batendo
Dentro da armadura. Batendo baixinho.
Com muito medo.

domingo, 3 de outubro de 2010

Maria

Maria era dura como a pedra onde batia a roupa de suas crianças.

Quanto mais a vida a maltratava, mais um pouco Maria endurecia.

Não que seu coração tivesse essa dureza.
Maria às vezes se fazia gentil, uma gentileza desacostumada,
Áspera, pois com a vida de outro jeito não aprendera.

Não sei se Maria sofria – ela era dura como o ferro,
Seu nome não rimava jamais com alegria.
Quando a vida dela zombava, Maria esperneava, gritava e
Depois... Depois Maria seguia.

As crianças que por ali nasciam, primeiro viam Maria.
Maria parteira, Maria que nunca partia.

Acho que Maria vivia porque a vida ali a queria.

Tanto que Maria às vezes perguntava:
"será que Deus de mim não se alembra?"
Eu acho que foi birra da vida que
Tanto queria dobrar Maria.

Mas, um dia, a morte chegou e, com grande respeito,
Desculpando-se, chamou Maria.
Maria, cansada, centenária, despiu-se de sua brabeza
e, obediente, a seguiu.

Obediente - como a vida nunca viu.
(À Dona Maria d'Otávio, que partiu aos 105 anos de idade.)